A formaçao do homem

"O que um homem pode ser, ele tem de ser" A. MASLOW



segunda-feira, 25 de julho de 2011

Deus-breves traços para uma antropologia filosofica

Solilóquios I
Salvar Deus?


De qual Deus és ateu? A pergunta não é impertinente. Por minha parte, eu não acredito em Deus algum, mas sei bem ao Deus em que acreditei durante a minha infância e a minha adolescência, um Deus presente, ainda hoje, deste Deus eu me importo, e ao qual, precisamente, não acredito mais. Não é o Deus dos filósofos, ou nem tanto. Não o Motor Primo de Aristóteles, tanto chato quanto imóvel. Não o Deus de Descartes, o qual não explica tudo  somente porque é incompressível. Não é o Deus de Espinosa, que não é um Deus. Ainda menos o Deus de Leibniz, com os seus cálculos infinitos e sórdidos. E nem aquilo dos padres, das homilias, dos teólogos. Nem aquilo dos hipócritas o dos preconceituosos. Não! O Deus  que me interessa, que me toca dentro e em que eu não acredito é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. É o Deus de Pascal (aquilo do Memorial, não da aposta) É o Deus de Jesus Cristo. Um Deus de amor, então, e não o amor como Deus. Alguém, não alguma coisa. Uma pessoa, ou três, não um princípio, um valor ou uma abstracção.
           
Acreditar no amor? Existe algo de mais vão, já que a sua existência não é objecto de dúvida? O Homem-Deus? Que Deus mísero nem consegue! O que é mais este Deus mortal, tanto mais capaz do pior que do melhor (a santidade é a exepção, o egoísmo a regra)? O que é mais este Deus que nem sabe se é Deus (já que não pode se-lo se não a condição que Deus, o verdadeiro Deus, não exista, coisa que ninguém sabe)? Acreditar no homem? Inútil. Adora-lo? Impossível. É melhor entende-lo, quanto é possível, respeitar aqueles que o encontram, mas desconfiar quando não se conhece (é o que ensinamos aos nossos filhos, e temos razão de faze-lo), perdoa-los sempre, ajuda-los as vezes, ama-los quando podemos...É o espírito dos evangelhos. É o espírito de Montaigne e de Espinosa. É, para mim, o espírito verdadeiro. Humanismo da vigilância. (“Caute”, dizia Espinosa: “Desconfia”) e da misericórdia (“Seja sábio quanto quiseres”, escrevia Montaigne, “mas fica sempre um homem: o que ha de mais caduco, de mais miserável e de mais insignificante?) (Essais, II, 2). O humanismo não é a nossa religião: é a nossa moral. O homem não é o nosso Deus: é o nosso próximo.
Em breve, não procuremos substitutos de Deus: não sacrifiquemos aos ídolos, ainda se fossem humanos ou humanistas.

“Deus é grande”, me dizia um amigo, “é uma tautologia. “ Deus é amor”, este sim que é interessante!” Estou de acordo, e é o único Deus, na verdade, que me interessa.
Não é um motivo para acreditar em ele. Ao contrario, é um motivo para recusa-lo. Uma crença que corresponde  “in toto”  aos nossos desejos mais fortes, existem aqui todos os motivos para pensar que tenha sido inventada por isso. É aquilo que S. Freud chama de ilusão, em outras palavras “uma crença derivada dos desejos humanos”; e se tudo isso não demonstra a inexistência de Deus (uma ilusão, observava Freud, não necessariamente é um erro!), isto faz da existência de Deus tanto mais duvidosa quanto mais ela é desejável. Ter ilusões significa considerar os desejos como realidade. Já que nada, por definição, é mais desejável de Deus, nenhuma crença é mais suspeita de ilusão que a fé na sua existência. Mas se dirá que a fé é mais de uma crença. Eu deixo subtilezas similares aos teólogos, e estou feliz de levar a serio o credo: ele melhor resume o que eu não acho.

Há também muito mal em todos os lugares e mediocridade de mais no homem porque a ideia de um Deus criador, omnipotente e ao mesmo tempo infinitamente bom, me apareça simplesmente credível.  Mais me conheço, menos posso acreditar em Deus. E mais  conheco os outros, ainda menos tudo isto combina.
Alem disso, deste Deus, também na minha juventude fervente, eu nunca tive a menor experiência. Porque deveria acredita nele agora? É um “ Deus escondido” (Deus absconditus) ? Bom para ele. Eu, alias, já não tenho idade para brincar ao jogo de esconde-esconde.

Quanto a minha maneira de ser ateu, posso caracteriza-la em uma frase: sou ateu não dogmático e fiel.
Ateu, certo, é o dado mais simples, já que não acredito em Deus.
Porque ateu não dogmático? Porque evidentemente reconheço que o meu ateísmo não é um saber – já que não é possível nenhum saber sobre Deus o sobre a sua inexistência. Tudo depende então da pergunta que me vem feita. Se alguém me pergunta: “ Você acredita em Deus?” a resposta é muito simples: é não. Em troca se me se pergunta: “ Deus existe?”, a  resposta é necessariamente um bocado mais complicada: porque, por honestidade intelectual, eu tenho que começar a dizer que não sei nada sobre o assunto. Não é um problema de incompetência por minha parte: o facto é que a pergunta supera qualquer saber possível ( sobre isto ver Montaigne, Pascal, Hume, Kant). Eu acho que se tu encontras alguém que diz: “ Eu sei que Deus não existe”, não se trata em primeiro lugar de um ateu, mas de um imbecil. E o mesmo acontece se por acaso encontras alguém que diz: “ Eu sei que Deus existe”. Se trata de um imbecil que tem fé ( coisa que eu não censuro de maneira alguma) e que tolamente, toma a própria fé por um saber – no qual caso constitui um dúplice erro: teológico ( a fé é uma graça, coisa que o saber não pode ser) e no mesmo tempo filosófico ( porque confunde dois conceitos diferente: a crença e o saber).
A vezes me dizem que eu sou mais agnóstico que ateu. Isto significa fraintender o agnosticismo. O agnóstico não é aquele que reconhece de não saber se Deus existe ou não ( seja os crentes e seja os ateus o reconhecem, se são lúcidos), é aquele que decide de seguir esta confissão de ignorância, que recusa de decidir, que deixa a questão aberta, é um “ sem opinião”. Esta na verdade não é minha posição. Eu não sei se Deus existe ou não. Mas acho que não exista. Um ateu não dogmático não é menos ateu que um outro. E’ simplesmente mais lúcido.

Porque então, ateu fiel? Porque, embora ateu, e agora com cinquenta anos, eu fico ligado, com todas as fibras do meu ser, a um certo numero de valores que foram forgiados e transmitidos, pelo menos em parte, nas grandes tradições religiosas, e em modo particular, já que esta é a minha historia, na tradição judaico-crista. Que Deus exista ou não exista, o que muda isto a grandeza do Ecclesiastes? O que tira tudo isto ao peso moral da mensagem evangélica? Eu sei bem que, por Jesus, é a fé, não o amor, que salva ( é um ponto, dito entre parênteses, que os nossos cristão humanistas as vezes esquecem). É por isso que eu não sou nem cristão nem cristico. Mas a fé abrange o campo da religião não da moral.
Que Jesus acreditou em Deus, é mais que verosímil. Isto não me obriga a acreditar eu também, nem a renegar o resto da sua mensagem. Era um judeu pio: o que não me obriga o seu judaísmo mais que a sua piedade, e não me impede em matéria de ética – e como fazia Espinosa – de reconhecer a beleza, a nobreza, a profundidade, o fascínio da sua mensagem.
É a verdade, não a fé que salva: é o amor, não a esperança que faz viver. Em isso eu acredito, é isso o que me faz ateu, e quanto vou dizendo eu, em parte, encontro nos evangelhos, na maneira minha de le-los, é quanto eu chamo com Espinosa “ o espírito de Cristo” (A. Matheron, 1971), que por muitos anos nutriu a minha infância, a minha adolescência e que continua, de vez em quanto, a me iluminar e fascinar. Não é que eu passe o meu tempo a reler os evangelhos: fazendo-o logo me apanha o tédio (como todos os testos escritos por e para prosélitos são chatos): mas tessi, ao longo dos anos, uma sorta de Cristo interior, que teria perdido a fé (“ Deus meus, Deus meus, porque me abandonaste?”) e que por isso seria somente mais livre, mais lúcido, mais amorável. Um buddha? Se se acha melhor. Mas que colocaria o amor mais em alto que a sabedoria, e isto é o que significa para o ateu como sou eu, a loucura da cruz. Vale muito mais um amor doloroso que uma serenidade que fosse sem amor.

O que é o absoluto? O que não depende de relação alguma, de alguma condição, de algum ponto de vista. É portanto o relativo mesmo, na sua totalidade. O conjunto de todas as relações é sem relação com o nada, porque é o tudo; o conjunto de todas as condições é necessariamente incondicionado; o conjunto de todos os pontos de vista não é um ponto de vista.
O que é o infinito? O que nada pode limitar: o conjunto das coisas finitas é então infinito o, pelo menos, indefinido. Todos os seus limites estão no seu  interior. Como poderiam limita-lo?

O que é a eternidade? Um presente que resta presente: é então  o presente mesmo, que muda e continua, que nos deixaremos, mas que não nos deixará nunca. O “ perpetuo hoje de Deus”, como dizia santo Agostinho, é também, e melhor, o perpetuo hoje da natureza ( o sempre-presente do real) e do pensamento ( o sempre-presente do verdadeiro). E o passado? Não é, porque não é mais. E o amanhã? Não é, porque ainda não é. Existe então somente o presente, e o mesmo não para de mudar ( não confundimos o eterno com o imutável) e de continuar. Como poderia cessar  o presente, já que não há mais outra coisa. Somos já no Reino: a eternidade é agora.

“ Nos sentimos e experimentamos”, escreve Espinosa, “ que somos eternos”. Não no sentido que o seremos, depois da nossa morte, coisa na qual Espinosa não acredita absolutamente, como eu também, mas no sentido que o somos, aqui e agora. E me aconteceu, na verdade, mais o menos de o experimentar. Sim, me aconteceu – raramente, excepcionalmente, mas em maneira assim forte que toda a minha vida resultou despedaçada – de viver momentos libertados da falta ( é o que chamo de plenitude), da linguagem ( é o que eu chamo de silencio), do passado e do futuro  ( é o que eu chamo de eternidade), da esperança e do temor ( é o que eu chamo de serenidade), da separação entre  eu e o tudo (é o que eu chamo de unidade), entre mi e mi mesmo (é o que eu chamo de simplicidade), enfim de momentos liberados de mi mesmo, e é o que eu chamo de absoluto. Ser ateu não significa renunciar a qualquer tipo de vida espiritual. Ao contrario significa dar  a si mesmo instrumentos, pelo menos teóricos, de uma diferente espiritualidade: de uma espiritualidade naturalística em vez  de humanística, quietista em vez de jansenista ( Pascal é um génio imenso, mas não um mestre espiritual), de imanência em vez de transcendência, de fusão em vez de encontro, de verdade em vez de sentido, de silencio em vez de palavra, de sabedoria em vez de santidade, de meditação em vez de oração, em fim de enstasi, como dizem os tratados de mística comparada, no lugar de êxtase. “ Até  que tu  colocas  uma diferença entre o absoluto e o relativo, tu estas no relativo. Até que  colocas uma diferença entre a eternidade e o tempo, tu estas no tempo. Até que tu colocas uma diferença entre a salvação e a perdição, tu és perdido”. Ou ainda – e como diria com prazer ao meu amigo Jesus, talvez estaria de acordo: “ Até que tu colocas uma diferença entre o Reino e o mundo tu estas…no mundo”. ( M.Onfray,2005). E onde mais poderíamos estar, dado que este mundo  é tudo o que temos. É somente em este sentido, a meu parecer, que nos já estamos no Reino, não graças  a esperança, não pela  fé, não porque o amor seria forte como a morte, como diz tolamente o Cantico dos Canticos, mas porque a morte, até que nos somos vivos, não pode nos impedir de amar nem, até que nos  amamos, de viver.  
Não é o homem que é Deus, nem Deus que se faz homem; são alguns homens que inventaram a ideia de Deus, quando não era por superstição, por expressar em eles ( ver  Etty Hillesum, ver Simone Weil) o que havia de mais grandes em eles: a verdade, a justiça e o amor. Deus seria a unidade omnipotente dos três. Mas também quando os três existem somente separados, como eu acredito ( a verdade não é suficiente para a  justiça, nem a justiça para o amor), e debilmente (é o que significa mais o menos  o ateísmo), é talvez um motivo para parar de ama-los, e de procura-los? O importante não é  acreditar ou não acreditar em Deus. O importante é não trair este poder que temos em nos mesmos de pensar, de julgar e de amar: o importante é o espírito, que é totalmente de graça e de misericórdia.

O facto que este espírito não exista se não em corpos viventes, a atreves deles e graças a eles, que não se desenvolva se não no seio de uma sociedade, uma historia, uma cultura, e graças a eles, eu estou convencido ( é por isso que sou materialista). E por causa de todo isto, que ele  é  mais  frágil e precioso. Se Deus existe, o espírito, por definição é imortal. O essencial é adquirido: é em isso a religião, quase sempre é o contrario do trágico. Se Deus não existe, é o inverso: cada espírito é frágil, provisório, mortal, como são também os nossos filhos, e nos sabemos por experiência, que esta não é uma razão suficiente para ama-los menos, pelo contrario, nem para protege-los menos, nem para educa-los menos. É o trágico mesmo: dar mais valor possível a aquilo que é destinado a perecer. ( M. Conche, 1990) O espírito de Cristo, para o ateu qual  é  sou, é o espírito do filho (“ Não vim para abolir, mas para levar ao compimento”: é o que eu chamo de fidelidade), e é o mesmo espírito do pai ou da mãe ( filho meu: meu amor). Que Deus seja Pai e Filho, e que este filho tive uma família, aqui esta o verdadeiro segredo do cristianismo. Antropomorfismo? Claro. Mas qualquer religião sem antropomorfismo seria inumana, e por consequência  impossível.

Que Maria seja virgem, é um pormenor ridículo, quase  grotesco, podemos dizer um mito ou uma superstição a mais. Mas que Jesus tive uma mãe, não. O Stabat mater de Pergolesi ou a Piedade de Michelangelo nos dizem muito mais, deste ponto de vista, de todo aquele numero de aparições, ou assim pensadas, que o Vaticano ostina-se a celebrar. A ultima das mães reais vale muito mais, se é amorosa ( e o são quase todas), de tudo o culto mariano.
Depois há a Cruz, e aquilo que ela simboliza. Não a glorificação do sofrimento, como pretendem alguns, mas a vitima inocente e obrigada ao suplicio: o amor ultrajado, umiliado, martirizado, “ sempre vencido”, como dizia alguém, “ que renasce ao terceiro dia” É mesmo assim. Não é a vitoria que nos amamos, mas  o amor e a vida. “ Como faz você”, escreve  Espinosa a um dos seus colaboradores, “ eu tomo a paixão de Cristo, a sua morte  e a sua sepultura a letra:, mas ao contrario de você, a sua ressurreição eu a tomo no sentido alegórico” ( B. Espinosa, Lettre 78).  Para significar o que? Não que Jesus não morreu, mas que a morte não pode anular aquilo que ele viveu, nem aquilo que nos vivemos.
O Presépio, o Calvário: duas ícones da fraqueza extrema. É o contrario do Deus omnipotente, e é por isso que, no meu ponto de vista, Jesus não é Deus. E então? Não é a potencia que nos amamos, nem Deus, mas o amor, a justiça e a verdade. Pelo menos, é o que eu procuro ser  fiel, na medida do possível, segundo as minhas possibilidades, e muitas vezes dolorosamente. A cada um a sua cruz, entre os dois ladroes. “ Deus meus, Deus meus, porque me abandonastes?”.  Porque não existe: não por culpa sua, evidentemente, nem por culpa nossa.
O importante não é que o espírito seja imortal ou não o seja ( não temos que confundir eternidade com perpetuidade). O importante é que permaneça vivo até que nos viveremos, até que viverão os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos. Somente isto depende de nos e exige todo o nosso esforço.
“ Os muitos leitores de Lucrécio”, observava alguem, “ sabem o que significa salvar o espírito negando o espírito”. Significa salva-lo em quanto acto, e nega-lo em quanto substancia. Significa salvar o espírito vivente, negando a sua imortalidade. Mas o que conta é o espírito, não a negação.


Novembro 2010
Pietro Andriotto

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